Durante o mestrado em Botânica, desenvolvi uma pesquisa em etnobotânica com foco em espécies de cactos com uso tradicional. Dentre os múltiplos usos registrados, o uso na alimentação humana apresentou uma forte conexão na região semiárida. Conhecido o famoso doce do cacto, localmente chamado de jéga, feito da cabeça de frade, um cacto muito apreciado na culinária regional. Um dos aspectos centrais da investigação foi o preparo de doces artesanais com esse cacto — prática comum em algumas comunidades do semiárido.
Apesar da riqueza cultural envolvida, os resultados do estudo apontam para um alerta importante: uma valorização gastronômica crescente dessa espécie pode colocar em risco suas medidas de conservação se adequações não forem tomadas. Este artigo tem como objetivo divulgar os dados da pesquisa e conscientizar sobre os riscos da exploração excessiva de espécies nativas com valor etnobotânico.
A Tradição do Doce do cacto Cabeça-de-Frade
Na Caatinga, no entanto, o cacto cabeça-de-frade é tradicionalmente utilizado como fonte de alimento em épocas de escassez. Conhecido por sua forma arredondada e coroa de espinhos vermelhos no topo, ele é utilizado principalmente no preparo de cocadas artesanais. Na prática, embora restrito a algumas comunidades, ganhou destaque na internet e em festivais de gastronomia regional.
No entanto, diferentes de outras espécies de cactos de rápido crescimento e propagação, os Melocactus spp. possuem crescimento lento, baixa densidade populacional e alta especificidade ecológica . Isso se torna especialmente vulnerável à coleta predatória.
Etnobotânica e Conservação: O Ponto Central da Pesquisa
Durante o estudo conduzido em comunidades do sertão nordestino, observamos ainda que a coleta do cacto para uso culinário se dava, em muitos casos, sem critérios de manejo ou replantio , e em áreas que já apresentavam sinais de manipulação.
Os principais pontos de atenção identificados foram:
Espécies com ciclo de vida lento : a coleta de exemplares jovens impede a regeneração natural das populações.
Ausência de práticas de manejo sustentável : não há, na maioria dos casos, ações para replantio ou cultivo controlado.
Popularização das receitas : a divulgação massiva de conteúdos incentivando o consumo do cacto como doce pode gerar uma demanda que as comunidades locais não consigam suprir de forma sustentável.
Um Alerta Para a Etnoconservação
Etnoconservação é o ramo da conservação botânica que respeita os saberes e práticas tradicionais, ao mesmo tempo em que busca garantir a sobrevivência das espécies no tempo. Ela reconhece que os povos tradicionais têm conhecimento profundo sobre a natureza, mas que o equilíbrio pode ser quebrado quando os usos tradicionais ganham visibilidade fora do contexto local .
No caso do doce de cabeça-de-frade, essa é exatamente a situação: uma prática ancestral que, ao se tornar “gourmet” ou viral, pode sofrer pressão de mercado e exploração comercial , sem o devido cuidado ecológico.
Dados Relevantes da Pesquisa
Mais de 80% dos autorizados confirmam a importância da cabeça-de-frade para a biodiversidade local.
A maioria das receitas tradicionais é feita com exemplares produzidos diretamente da natureza , sem cultivo planejado.
Algumas subespécies já aparecem como ameaçadas nas listas estaduais e no Cadastro Nacional de Espécies Ameaçadas.
Além disso, durante o levantamento em campo, foi constatada a ausência de qualquer política local de incentivo à propagação artificial ou cultivo em viveiros , o que limita as alternativas sustentáveis para o uso do cacto.
A Importância da Educação Ambiental e Científica
Um dos grandes desafios da conservação de espécies com valor cultural é equilibrar o respeito à tradição com o compromisso ambiental . Por isso, parte do trabalho envolveu também oficinas educativas em escolas e associações rurais, onde discutimos temas como:
Como cultivar espécies nativas de forma segura;
A importância dos cactos para o ecossistema da Caatinga;
Como a culinária pode ser aliada à conservação.
Essas ações permitiram que a conscientização local fosse possível e bem recebida, desde que feita com respeito, diálogo e valorização do saber popular.
Um Caminho Possível: Valorização sem Extração
Ao invés de cultivar o preparo de doces com cactos retirados diretamente da natureza, podemos propor alternativas como:
Criação de viveiros comunitários de espécies nativas;
Educação para o manejo sustentável ;
Parcerias entre universidades e associações rurais para propagação artificial;
Valorização da biodiversidade como patrimônio cultural e ecológico, não apenas como recurso.
A valorização da cabeça-de-frade pode (e deve) continuar existindo — mas de forma consciente, com base científica e ecológica respeito.

Doce do cacto cabeça-de-frade: Uma Doçura que Pode Custar Caro
A pesquisa realizada no mestrado em Botânica, não teve como objetivo promover receitas, mas sim compreender o impacto do uso tradicional de uma espécie nativa da Caatinga em sua sobrevivência ecológica . No entanto, o doce de cabeça-de-frade é, sim, parte importante da cultura local, mas precisa ser tratado com cautela.
A divulgação científica tem o papel de informar e alertar . E neste caso, o alerta é claro: se não forem adotadas medidas de conservação e conscientização. Vale ressaltar que, o cacto cabeça-de-frade pode entrar na lista de espécies ameaçadas. No entanto, por conta de um uso que começou como sobrevivência, virou tradição e pode terminar como exploração.
Por fim, este é um convite ao debate, à pesquisa e ao respeito pelo nosso bioma. Que possamos aprender com o conhecimento tradicional, sem colocá-lo em risco.

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